Anualmente, obedeço a uma passadinha nos festejos de São Raimundo Nonato. Vi nascer aquele simpático templo na minha infância, anos 50. Antes, só tosca capelinha coberta de telha, onde mal cabiam umas cem pessoas, bem ao lado da atual igreja. Teresina de 150 mil habitantes corria para os festejos de São Raimundo, na distante Piçarra. Apesar de pobre, a região atraía aventureiros endinheirados do Centro, devido aos badalados cabarés, como Casa Amarela. A cidade praticamente acabava nas imediações do Posto Cacique, onde se erguia imenso pé de tamarindo. Avenida Miguel Rosa, estreita, esburacada, poeirenta, terminava 200 metros após. Poeira também o apelido do miserável cinema da Piçarra, na entrada da Avenida São Raimundo.Para os padrões urbanísticos de hoje, a Piçarra não era bairro, mas favela. Pior, o mínimo de energia elétrica, nenhum calçamento, abastecimento de água através de chafariz público ou cacimbões. Tifo matava crianças de diarréia e verminose.Para a Piçarra vieram meus pais, Dedé e Martinho, das bandas de Sobral, montaram bodega, depois farmácia, ajudaram a construir o bairro. Ele se encontra no céu há dois anos. Ela, numa cadeira de rodas, 81 anos, nenhum resquício de memória.A construção do templo de São Raimundo Nonato lembra uma épica jornada de hebreus no deserto. Na capelinha, eu me sentava no pedestal do altar, durante a missa, ouvia o vigário e capuchinho Frei Eliézer, longas barbas aloiradas, olhos verdes belo, anunciar a construção do novo templo, modelo de altar, móveis e arcadas, de me encher de curiosidade, menino pobre magricela. Ensinou-me tarefas da liturgia, visitava minha casa, passeava com ela na garupa de sua moto, despertou-me a vocação pro seminário. Noites frias, devido à farta vegetação, eu voltava do novenário tilintando de frio.Frei Eliézer juntava multidão de fieis em procissão, nas tardes de domingo, descíamos a Rua Santa Luzia, a pé, até o rio Poti e regressávamos com sacos de areia para a construção do templo. O frade enchia o capuz da batina com areia. Durante a semana, o vigário metia-se entre pedreiros, amassava barro, subia andaimes, pegava dura na colher, descia estafado, batina imunda, molhada de suor. À noite, exibia filmes com entrada paga, para custear despesas. Nas cenas de beijos na boca, ele tapava o foco. E eu me danava.Um dia, Frei Eliézer recebeu ordens superiores para outras missões no Pará. Sofreu tanto com a noticia de seu desligamento da paróquia de São Raimundo Nonato, que se debilitou e acamou-se durante dias. Visitei-o no Convento de São Benedito, quase chorei. Foi-se deixando a conclusão da obra à responsabilidade de Frei Heliodoro, superior do convento.Custa-me acreditar que a Igreja de São Raimundo Nonato nunca mais tenha visto seu heróico construtor. Nem fora convidado para o foguetório de inauguração.Pior, a lápide que traz a data do evento apenas cita Frei Heliodoro. Também já foi arrancada. Por que os franciscanos, que herdaram o patrimônio, escondem a história fantástica da missão capuchinha na Piçarra. De mim e que não me roubam primeiras emoções de fé.
Crônica escrita por: José Maria Vasconcelos
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